No pouco tempo que me resta, antes que o sol nasça e rompa com a noite trovejante repleta de pingos notívagos e antes que a memória e a inspiração sejam apagados e soprados pelo vento do esquecimento e do cansaço, debruçar-me-ei, aqui, para relatar o que se passa. O fato é que a vida possui diversas facetas, ainda hoje dei o primeiro passo rumo à habilitação, e também hoje deparei-me comigo mesmo no Espelho milenar em que pude ver as imperfeições que me fazem humano e as rugas da alma que insistem, como traça, corroer as mais belas e poéticas aspirações arraigadas nas mais profundas recâmaras de meu âmago. O Espelho pode ficar velho com o passar dos anos, mas jamais deixará de ser eficaz e apto tal como espada que separa os ossos das medulas, o espírito da alma, num processo de contemplação constante e tendendo ao infinito. Ao quebrar as ilusões e as desilusões que insistem em me fazer um pseudo-supra-humano, o Espelho trouxe-me à mente o indelével valor da comunhão, do amor e da necessidade de estar perto daqueles que, dia após dia, barbeiam-se e penteiam-se ante ao velho Espelho. Ora, tal Espelho reflete aquilo que pouco a pouco deixo de ser. Ao avistar-me, exclamo: Miserável homem que sou; quem me livrará do corpo dessa morte? Deparo-me com a velha natureza arraigada no pecado que me faz pobre, cego, miserável e nu.
O que fazer ao contemplar minha própria desgraça e desventura? Ora, corro em direção àquele que deu forma e vida ao Espelho, sabendo que esse criador também é autor da vida e de todos aqueles que, assim como eu, avistam-se ante o Espelho para pouco a pouco contemplar sua miséria e lançar sua vida aos quatro ventos, de modo que, tudo o que se é, passe a não ser mais, a fim de que o Criador do Espelho seja tudo o que se é, sendo, pois, tudo em todos. Quanto aos companheiros de contemplação, como é bom estar perto desses indivíduos. Cientes das imperfeições, destituídos de toda e qualquer esperança no gênero humonóide e fracassado. Lança-se, assim, toda esperança no Autor e consumador do velho Espelho.
Dentre os contempladores do Espelho, lembro-de um em quem minha alma exulta e regozija só de lembrar. Trata-se de um indivíduo baixo, barbudo e sorridente que após contemplar a si mesmo e suas misérias no Espelho, esvaziou-se de si mesmo, tal como o ator que deixa o espetáculo na véspera da desonrosa tragédia, de modo que pouco se encontre de si mesmo, senão uma vida repleta de Deus. Ninguém pode servir a dois senhores, disse o Espelho. Esse indivíduo escolheu reduzir a si mesma para se tornar grande no Autor do Espelho. Quão belo e suave é o olhar daquele que vive morto para si e cheio de vida para dar, proclamando em alto som no cume dos montes e no fundo dos vales o amor da boa nova. Após estender as mãos sobre mim, deu-me um fraterno e santo ósculo. A vida se torna mais bela no olhar e no agir daqueles que resolvem morrer para que outros possam viver.
Após remoer memórias e brigar com a inspiração, chega-se a concluir que tudo que não esteja fundamentado no amor e na verdade do velho Espelho irá passar e se desmanchar no ar. O que é a vida senão um vapor que começa denso e forte e pouco a pouco se desvanece a ponto de se tornar inexistente? Tal como a erva do campo, o tempo se encarregará de fazer as justas colheitas ao seu tempo e modo. Enquanto isso, o Espelho continua a me mostrar a realidade que sou na pessoa do impostor que habita em mim. O fôlego que do céu desce adentra minhas estranhas e declaro guerra contra mim mesmo. É tempo de morte. Morte ao egoísmo, à idolatria, à soberba e à maldade. É tempo de vida. Vida ao amor ao próximo e a Deus, vida ao altruísmo, vida à comunhão, vida à contemplação, vida ao vivo Espelho, vida à vida.
Post Scriptum I: Viver e não escrever é perecer.
Post Scriptum II: Miserável homem que sou; quem me livrará do corpo dessa morte?
Oppositer