sábado, 2 de março de 2013

Adeus, povo de Decápolis!


               Eis aqui Cícero, o jovem velho, eterno peregrino à procura do lar, filho de humanos ordinários e órfão dos privilégios da vida. Após uma vida vivida no conforto do seu desconforto, lamentando os males que afligem todo indivíduo debaixo do sol, Cícero caiu em si e percebeu que a hora de chegar havia partido. Fitando os olhos na velha cidade, bradou: Adeus povo de Decápolis!
                Toda e qualquer despedida não é, de modo algum, um momento agradável. As memórias vêm à tona, atropelando uma sobre a outra, de modo a remontar lugares, cenários, cheiros e sentimentos. Mas não há mais tempo para o jovem Cícero. As lembranças surgem como facas de dois gumes que cortam a dilaceram as entranhas da alma nua.  Ao contemplar os verdes pastos e colinas distantes, Cícero encontrou-se consigo mesmo; em cada rua e em cada esquina Cícero deixou um pouco de si; em cada luar e em cada noite em claro, o notívago compôs canções que ouvidos jamais ouviram; aos colegas, o coração externava a gratidão de comporem a platéia em torno ao solitário púlpito da existência; aos amores, a alma, tímida e verdadeira, relembrava os dias de paixão que se consumiram como os ramos da sarça ardente. Não foram poucos os pedaços da alma que Cícero espalhou por Decápolis, e muitos eram os filhos dos seus aborrecimentos que bailavam desnudos ao som dos bramidos dos dias mal vividos e do bem não realizado, que perambulavam sorrateiramente no sempiterno ecoar dos seus pesares.   
                Entretanto, não lhe é tarefa símplice desfazer de suas mazelas sem ao menos sentir as dores oriundas dos cismas de uma despedida. Não é mera roupa que se troca no dia que o vento gélido sopra, mas é despir-se da própria pele arrancando-a com as mãos. De muito bom grado levaria tudo e todos para a próxima parada, mas como fazê-lo? Cícero, então, relembra os contos proferidos por um velho andarilho que passara por Decápolis afirmando:

A vida é como é um barco. Apesar de projetado para navegar, o barco encontra alento e segurança atracado nos portos e nas encostas; entretanto, o barco não fora projetado para permanecer no porto, senão para zarpar e enfrentar os bravos mares e os ventos impetuosos a fim de desbravar novos horizontes. Na vida, encontram-se muitos portos seguros, a saber, a família, os amigos e os amores, tendo cada um deles a sua excelsa função, porém nenhum deles pode impedir o barco de partir. Por isso, navegue, filho meu! Enfrente as altas vagas e alcance o fim do arco-íris antes que a ferrugem e a velhice te corroam os ossos e a melíflua alegria de possuir fôlego de vida. Navegar é preciso, porquanto navegar é viver.


                O trem se aproxima trazendo consigo estranhos jamais vistos, afinal, a vida é um grande castelo de destinos que se cruzam.  O apito solitário em meio à tarde de inverno anuncia o fim de uma etapa. Despindo-se do passado, Cícero adentra o trem e parte para nunca mais. A separação se confunde com o encontro, assim como o anoitecer se funde à luz da aurora. Cícero, fitando os olhos em Decápolis, falou em alta voz: se, por ventura, nos esbarrarmos  outra vez nas esquinas da vida ou da memória, conversaremos de novo e ouviremos a velha canção que diz que a vida é repleta de despedidas.
 Adeus, povo de Decápolis! 






Oppositer

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